quinta-feira, junho 23, 2005

Liquidificador de Memórias

João Paulo Cuenca, ele escreve para a revista TPM

A leitora vira a página da revista e dá de cara com a coluna. Com sorte, lerá o texto até o final. Talvez gaste um ou dois pensamentos sobre o que leu e tire alguma conclusão. Se o escritor for muito afortunado, a leitora poderá ficar dias com o texto martelando na cabeça. Pode até copiá-lo para os amigos, colar a página na porta do armário e elogiar o autor. O tempo que a coluna vai durar para a leitora dos sonhos do colunista é, vá lá, trinta dias. A leitora média deve esquecê-lo em cinco minutos e a impaciente em trinta segundos. O próprio autor corre o risco de esquecer o que escreveu, perdido sob uma montanha de textos velhos e possivelmente constrangedores para ele mesmo, passados uma ou duas dúzias de anos.

A leitora vai ao cinema e adora o que vê. Depois, na praça de alimentação, as opiniões se dividem sobre o filme. Algumas amigas da leitora odeiam a história e automaticamente caem no seu desgosto – um bom filme é capaz de sepultar amizades profundíssimas. A leitora pode vestir determinada roupa influenciada pelo filme, sonhar com os seus personagens e, mais ainda, querer ser um deles. Paixão parecida pode despertar uma peça de teatro, livro ou banda de rock. A leitora vai diversas vezes ao teatro para ver a mesma peça: decora o texto e chega a corrigir os atores. A leitora relê um livro com entusiasmo e acaba mudando um pouco seu jeito de pensar por causa dele: os outros se transformam em simplesmente aqueles que ainda não leram o livro, o resto do mundo. Com a música, mais do mesmo: a leitora só sente vontade de ouvir aquele disco e o esperado encontro com o artista, viagem para o país marcada e cancelada inúmeras vezes, ganha ares de experiência espiritual, epifania e consagração.

Depois do cinema, a leitora passa uma noite especialmente divertida e agradável. Volta com o namorado para casa, bota o disco da banda preferida no som, conta sobre o grande filme e, se o colunista estiver com sorte, fala sobre o texto que leu na Tpm do mês passado. A leitora se larga ao namorado, nua e espontânea, braços e pernas soltos sobre a cama. Depois deita sobre o peito do namorado e dorme sem sonhar. A leitora está completa e realizada – não deseja estar em nenhum lugar que não seja ali, agora. A leitora tem a nítida sensação que o exato instante em que ganha consciência de tamanha felicidade, poucos segundos antes de dormir, vai durar para sempre e jamais será esquecido.

Mas todos esquecemos. Da enorme maioria dos filmes, bandas, peças, livros, noitadas, amigas, viagens, namorados e namoradas. Os filmes duram em média dois meses; as bandas, um ano; as peças, onze meses; os livros, seis meses; as noitadas, entre quarenta e oito horas e três semanas; as amigas, cinco anos; as viagens, quatro anos e meio; e os ex-namorados e namoradas, entre seis meses e um ano. O eterno acaba durando bem menos do que a encomenda.

De quantos momentos marcantes a leitora é capaz de lembrar? Cinco? Vinte e três? Onze? Sambando numa pista de dança vazia de uma antiga casa na Lapa, indo para a Disney aos quinze anos, a primeira vez que viu um homem nu, aquele porre na chopada da faculdade, quando viu seu pai chorar, assaltada indo para o colégio, usando vestido sem calcinha, festa na cobertura do hotel, primeira vez que amou tanto que achou que fosse a última. A leitora não tem como saber quais lembranças realmente vão emplacar, passados uma ou duas dúzias de anos.

Somos incapazes de organizar nossas lembranças, ordená-las sob critério racional e encontrar algum sentido nelas. Mestre Waly Salomão dizia aos brados que a “memória é uma ilha de edição”. Acho que está mais para um liquidificador onde fatos, lugares e pessoas se retalham e confundem. A idéia de fazer da vida presente eternidade e do amor presente o último é uma extravagância retrógrada e fora de moda. Mas as leitoras devem saber que este colunista é um homem praticamente medieval, de hábitos obsoletos e quixotescos. E que deseja emplacar ele mesmo entre tantas memórias da menina. Mais ainda: construir novas e chutar a bunda das velhas lembranças da menina.

Ontem, mais sóbrio do que nunca, escalei a torre de um castelo, lutei contra dez moinhos, trinta e dois dragões de sete cabeças, e pedi a mão da menina triste de olhos verdes...

1 comentários:

Arqueira do Tempo disse...

Aqui vai uma frase curta:
"não é que existam pessoas parcialmente surdas... elas só escutam o que querem ouvir"... da mesma forma a gente... só lembramos do que nos interessa (de alguma forma).
Um abraço pra você!
Lauriana.