domingo, agosto 07, 2005

Praias Paradisíacas

Eu adoro este texto do Coutinho, foi por causa dele que passei a ler sempre os textos dele. É ótimo encontrar uma pessoa tão ou até mais antipática que eu...

Porque faço questão de gostar dessas pessoas que são autênticas e não-bajuladoras e tmabém faço questão de ser uma dessas pessoas que não concorda com todo mundo só para agradar, na verdade as más línguas dizem que faço questão de descordar só pra ser antipática. Mas quem liga? Eu não.

Praias paradisíacas
João Pereira Coutinho

Aqui há uns anos, corria maio, terminei uma relação promissora com uma menina bonitinha por causa de uma expressão casual. As férias desenhavam-se no horizonte. E ela, com a ingenuidade própria dos anjos, sugeriu agosto num sítio qualquer onde existiam "águas cristalinas e praias paradisíacas".
Como é que é? A expressão, o problema está na expressão. Sim, detesto praia, porque praia é a encarnação terrena do inferno: povo, vendedores ambulantes, crianças gritando, jogando, correndo. Bichos marinhos. Afogamentos. E nudistas, sobretudo senhores de cinquenta ou sessenta anos que gostam de ostentar orgulhosamente os seus pênis mirrados. O açougue em forma humana. E toda a gente fazendo de conta que é natural: "não olha, querido, é apenas um pênis passeando pela brisa da manhã". Bom, natural é: como terremotos, furacões e outras desgraças.
Mas aquilo que me entristeceu foi a expressão. Dizer "águas cristalinas" é muito mau. Dizer "praias paradisíacas" é o fim: a corrupção da mente pela indústria do turismo.
Claro que não me livrei do ordálio anual. Quando maio aterra entre nós, as férias começam a sua dança macabra. O destino. A marcação no destino. A escolha criteriosa do destino. A escolha de acompanhantes. Minha vontade é desistir logo. E eu desisto. Marco férias e, na véspera da partida, dou entrada (fictícia) no hospital. Já fui operado de apendicite, sei lá, umas três ou quatro vezes. Uma namorada, certo dia, perguntou: "Você não retirou esse apêndice o ano passado?" Disse que sim. "Mas ele cresce, meu amor". Também retirei pedra do rim, tive princípio de infarto ("coitado, é tão jovem, etc., etc.").
Outras vezes arrumo um compromisso profissional (fictício) que me obriga a ficar. Insulto patrões imaginários. Choro de raiva. Prometo passeatas contra a globalização. "Porto Alegre, me espere!" Vou ao aeroporto, despeço-me dos amigos com muita dor, aceno como um cachorrinho sem dono, vejo o avião partir. E depois regresso, levitando, mais feliz que Gene Kelly dançando sob a chuva.
Durante duas semanas, a minha felicidade é total. O prédio está silencioso e habitável. A cidade, idem. O telefone não toca. É possível ler sem limites. Os restaurantes servem bem, os cinemas não estão lotados. Podemos dirigir. Podemos ser dirigidos. E, com muita sorte, encontramos alguém que também ficou: existe nas pessoas que ficam uma nobreza que sempre me encantou. Então as noites são minhas. E longas. E íntimas. E apaixonadas.O problema é que as férias não são normais. E as pessoas não se comportam como gente normal: comportam-se como animais em cativeiro, subitamente libertas de sua jaula habitual. Por isso correm como loucas e se comportam como loucas, exibindo uma alegria artificial. As pessoas, em férias, fazem um esforço tão delirante para "estar em férias" que muitas terminam exaustas. E em depressão. Conheci casos. E para quê?
Fiquem. Em casa. Eu vou ficar. Chega de mentiras. Tive duas propostas este ano. A "praia paradisíaca" (um clássico) e uma viagem longa a um "país espiritual" (algures no Oriente). Confessei tudo, como um criminoso arrependido. As pessoas ouvem a minha confissão e ficam incrédulas: como é possível alguém recusar filas intermináveis no aeroporto, viagens de quinze horas com um bebê que vomita leite o tempo todo, gastronomia local (tradução: disenteria) e meninos de hotel subnutridos (e explorados) que não sabem preparar um dry martini como devem? Mas depois se habituam. Algumas já experimentaram este supremo risco --não ir de férias. E quando setembro chega e o trabalho regressa, todas perguntam, com orgásmica serenidade: porque motivo andei fingindo todo este tempo?

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