sexta-feira, novembro 09, 2007

O inferno são os outros

João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.
da Folha Online

Não uso relógio. Nem sequer para despertar. Despesa inútil. Os meus vizinhos tratam do assunto por mim, todos os dias, nos sete dias da semana. Mudei de casa uns meses atrás e fiquei abismado com a pontualidade dos bichos. Comecei por tirar apontamentos. Interesse científico, não mais. Hoje, conheço a rotina deles, e a minha, que recito de memória como os Gregos Antigos recitavam as canções de Homero.

Durante a semana, tudo começa com o vizinho de cima que usa o banheiro às seis da manhã. A mulher usa às seis e quinze. Sei distinguir os gêneros pelo fluxo urológico: intermitente, o dele; contínuo, o dela. Problemas de próstata, aposto. Depois, a água do lavatório corre, ele provavelmente faz a barba. Não sei quem usa o secador. Pela expressão industrial do som, é ela. A julgar pela dimensão do penteado, que me assaltou certo dia no elevador, é definitivamente ela. Às sete, abrem a porta do apartamento. Usam as escadas (de manhã), porque é mais rápido. Ela fala muito. Ele não fala nada. The end?

Longe disso. É pelas sete que os vizinhos do lado continuam a sinfonia inacabada. Confesso que não são tão pontuais como os vizinhos de cima. Às vezes, com indisfarçável preguiça, acordam às sete e dez, sete e quinze; depois acordam as crianças, dois anjos que começam imediatamente a destruir a casa e as minhas últimas réstias de sanidade. Das sete e vinte às oito e pouco, os pais tomam banho; os filhos já tomaram na noite anterior e aproveitam a ausência dos pais para deitar fogo à casa.

Brinco. Ou quase. Os desenhos animados passam agora na TV com potência sonora que daria para alimentar um estádio. O prédio treme. Perante o excesso, a mãe grita com os filhos. Os filhos, num belo retrato da educação moderna, gritam com a mãe. Aposto que batem na mãe. E eu, como qualquer cinéfilo amador perante as torpezas do vilão, pergunto com unhas roídas: "E o pai? Onde está o pai, meu Deus?"

O pai entra em cena, acaba com a discussão e, pela violência dos tapas, acaba com os filhos. São segundos de silêncio, segundos de suspense, quebrados finalmente pelo choro das crianças, que começa em crescendo, como nas aberturas de Wagner. Fenômeno fascinante: elas nunca choram ao mesmo tempo. A orquestra está suficientemente afinada para que uma avance quando a outra se cansa. Às oito e meia, a família abandona o lar. Aplausos, aplausos.

Tenho duas horas de descanso. Até as dez e meia, altura em que o vizinho de baixo entende ser seu dever moral contribuir para a minha educação nas áreas do metal, trash, black metal, doom metal e manicômio metal. Em matéria de radioatividade, não há diferenças entre Lisboa e Chernobyl. Pelas onze, avançam os Sepultura. Pelas onze e dez, eu peço para ser sepultado. E começo a redigir o meu testamento para o caso de me encontrarem na banheira, o único sítio da casa onde posso dormir e até escrever sossegado. Como Vinicius de Moraes, sim, que seguramente tinha vizinhança igual.

Pena que a banheira nem sempre resulte: aos fins-de-semana, por exemplo, os meus vizinhos aproveitam as manhãs livres para fazerem o que Adão e Eva começaram depois do episódio da maçã. O meu banheiro, não perguntem por que, amplifica as intimidades.

Os de cima são silenciosos e rápidos. Em dez minutos, e como diria Glauber Rocha, é a terra a transar. Das onze às onze e dez, existe uma cama e existe o triste ranger da cama. Não trocam palavra. Ou trocam - mas eu não consigo ouvir. Pena. Quando a água chapinha no bidé, sabemos que a paixão também corre pelo cano. Até ao sábado seguinte.

Mas estranho são os vizinhos do lado. Com duas crianças, eles conseguem repetir a dose e a senhora leva o prêmio Meg Ryan da Semana. Com a diferença de que Meg Ryan fingia o orgasmo. Aqui, não, violão. É impossível, humanamente impossível, fingir uma coisa destas: gritos sincopados, como a sirene de uma ambulância, que termina com um vigoroso rugido selvático, na melhor tradição Metro-Goldwyn-Mayer.

Felizmente, o amor do vizinho de baixo pelo rock metálico já o deixou surdo há muito para os chamamentos de Cupido. Nenhum sexo por aquelas bandas. Exceto se o ladrar do cão, que se prolonga por 24 horas, for a cobertura perfeita para um verdadeiro Casanova dos infernos. Prometo investigar.

A dúvida é inevitável: chegou o momento de eu trocar de casa? Não creio. Não apenas porque o cenário seria provavelmente pior, ou igual. Mas porque existe em toda esta sinfonia um fundo familiar, e até teatral, que simplesmente me encanta. Teatral? Nem mais. Deitado na escuridão da cama e com o sono desfeito em farrapos, eu sou uma espécie de encenador por antecipação, que dá ordens mentais aos meus atores privados.

"Correr a água."

Eles correm a água.

"Bater nas crianças."

Eles batem nas crianças.

"Rugir como um leão."

Rrrrrrrrrrrrrrr...

Além disso, seria duvidoso que eu encontrasse em qualquer outro bairro da cidade leitores desta "Folha" tão fiéis como os vizinhos de cima, de baixo e do lado.

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