domingo, junho 21, 2009

O armário de Darwin

Hélio Schwartsman*

Aproveito a edição de mais uma parada gay para arriscar alguns comentários sobre liberdade, intolerância e ciência.

Durante muito tempo, a esquerda em geral e a correção política em particular elegeram certos ramos da ciência, em especial a sociobiologia e a psicologia evolucionista, como inimigos mortais. Bastava alguém invocar a seleção natural para tentar explicar algum comportamento humano que a tentativa era logo denunciada como "reducionismo biológico", "darwinismo social", "animalização do ser humano", "medicalização" e outros qualificativos pouco abonadores. (É claro que muita besteira foi e ainda será dita tendo como base a moldura evolucionista, mas daí não se segue que o modelo teórico esteja sempre equivocado.)


Não é sem surpresa, portanto, que agora se constata que o movimento gay, talvez o mais legítimo representante da cruza entre o pensamento de esquerda e o politicamente correto (PC), está abrindo o armário de Darwin e flertando com algumas das explicações biológicas para o homossexualismo.

Adoraria ser o primeiro a cumprimentar o movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais), agora rebatizado LGBT em deferência ao público feminino, por ter se despido de seus preconceitos ideológicos e aceitado que genes são uma parte importante da (vamos lá, vou proferir o palavrão) natureza humana. Receio, entretanto, que a mudança de atitude se deva mais a cálculos ditados pela agenda política do que a franca reflexão.


O raciocínio que parece motivar o LGBT é mais ou menos o seguinte: se o homossexualismo tem raízes biológicas, ele não pode ser qualificado simplesmente como "opção"; seria antes uma "orientação", a qual, se não constitui um destino fatídico, de algum modo participa da natureza do indivíduo, não podendo ser modificada a seu bel-prazer. O objetivo é combater os discursos francamente homofóbicos que definem o homossexualismo ou como uma escolha moralmente errada ou como uma doença que possa ser curada através de terapia ou exorcismos.

Não há dúvida de que estas são teses bisonhas. Se me fosse dado "curar" alguma coisa, eu curaria a humanidade de certas visões religiosas que não admitem que pessoas possam pensar e agir de forma diferente daquela recomendada em livros escritos dezenas de séculos atrás. Parece-me um equívoco, contudo, atrelar o combate à homofobia a uma teoria científica.

Para começar, a ciência está calcada em hipóteses que podem por definição ser refutadas a qualquer momento. Vamos supor que o fundamento lógico para eu recusar a discriminação contra gays resida na "evidência científica" de que o homossexualismo tem componentes genéticos. Imagine-se agora que alguém demonstre de forma insofismável que tais evidências estavam erradas. O que ocorre neste caso? A discriminação fica legitimada?

Não é preciso puxar muito pela memória para lembrar que movimentos por direitos civis e "ciência" (sim, ela é uma atividade humana como qualquer outra e, enquanto tal, caminha ao sabor de circunstâncias políticas e constructos sociais) já estiveram em lados diferentes das trincheiras. Até 1977, a Organização Mundial da Saúde listava o homossexualismo como uma doença mental. Não sei se recomendava ou não o exorcismo, mas certamente autorizava psiquiatras a tentar a "cura".


E vale lembrar que a reconciliação entre o LGBT e o evolucionismo ainda está longe de ser total. Basta alguém lembrar que, do ponto de vista da seleção natural, o homossexualismo soa em princípio como uma péssima estratégia, um equívoco mesmo, dado que são mais do que remotas as chances de os genes passarem para a próxima geração, que os gays voltam a torcer o nariz para a ciência. É claro que homossexuais exclusivos não se reproduzem (apesar de, a cada versão da parada, os organizadores anunciarem um público sempre maior), mas não faz muito sentido confundir sucesso reprodutivo com sucesso pessoal. É verdade que os interesses dos genes e do indivíduo que os carrega normalmente coincidem, mas nem sempre. Em termos humanamente pragmáticos, se o gay está feliz com a vida sem filhos que leva, pior para os genes.


Todas essas dificuldades se resolvem se renunciarmos à ideia de que nossas intuições morais devem estar apoiadas em juízos científicos. Trocando em miúdos, devemos combater a homofobia não porque o homossexualismo seja natural ou genético (ou uma construção social, tanto faz), mas simplesmente porque duas ou mais pessoas adultas agindo consensualmente têm o direito de fazer o que bem entenderem entre quatro paredes. O combate à homofobia, ao racismo, ao chauvinismo e a vários outros ísmos de que não gostamos se justifica porque consideramos moralmente errado discriminar com base em orientação sexual, raça e origem, não porque existe uma proibição de fazê-lo inscrita na natureza.

Precisamos também tomar muito cuidado para que, no afã de travar o justo combate, não destruamos ou limitemos outros valores e liberdades moralmente relevantes. Imaginemos um gay que, por algum motivo, esteja profundamente infeliz com a sua orientação sexual e deseje tornar-se heterossexual. É claro que podemos encaminhá-lo para um serviço de apoio psiquiátrico ou psicológico onde um profissional competente vai tentar convencê-lo de que não há nada de essencialmente errado no fato de ser homossexual. Suponhamos, porém, que o paciente não se convença e continue sentindo-se desajustado. Será que ele não tem o direito de tentar ser feliz buscando "curar-se" de sua homossexualidade?

De modo análogo, sou o primeiro a dizer que é uma tremenda de uma bobagem achar que existe um Deus e que Ele espera que nos comportemos de acordo com as recomendações de um livro antigo, mas sou também o primeiro a afirmar que as pessoas têm o direito de acreditar no que bem entenderem, por mais extravagantes que nos pareçam suas ideias. E, se um pastor acha que o homossexualismo é um pecado, deve poder dizê-lo a quem queira ouvir. Deve, também, poder tentar "curar"pessoas que desejem ser "curadas". Esse tipo de discurso contribui para a consolidação de preconceitos e atitudes intolerantes? Aposto que sim. Mas o mundo está longe de ser um lugar perfeito e sem conflitos.

Não podemos, em nome de uma utopia, de uma sociedade plenamente harmônica e sem preconceitos, sacrificar um núcleo de liberdades fundamentais que inclui a de ter ideias tolas e difundi-las. A intuição moral que fundamenta esse direito é a mesma que nos diz que indivíduos devem ser livres para exercer sua sexualidade da forma que bem entenderem.

No mais, não creio que proibir piadas de bichas como agora o LGBT pretende fazer seja a solução para nada. O ataque contra o humor serve apenas para tornar o planeta, que já não é lá essas coisas, um lugar um pouco pior.

*É editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

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