O mundo nos reflete antagonismos e paradoxos. Novidade? Nenhuma. Então, por que nós, eu e você, único caro leitor amigo, ficamos nos perguntando o porquê de sermos diferentes do que queremos ser e com certeza diferente do que deveríamos ser.
A filosofia do Direito adora contrapor o Ser e o Dever Ser, Kant o fez com propriedade, Habermas não nos permitiu esquecer.
Se as obrigações, sejam advindas de leis morais, sociais ou escritas, nos condenam a uma existência previsível, então a razão determinaria infalivelmente a vontade, as ações de um ser. Isto, necessariamente, implicaria que a vontade fosse faculdade de escolher só aquilo nos é permitido e ofertado como opção. Esse é o mundo ariano do Dever Ser.
Entretanto, a razão só por si não determina suficientemente à vontade. Daí surge: a liberdade, a complexidade e até as angústias do homem, mas também traz em si a magia dessa raça. Temos o círculo do Ser, esse sim é bastante interessante. Plagiando Nelson Rodrigues: “a vida como ela é”, sem véus e moral.
Entretanto, há um mundo onírico que me interessa muito mais: o Querer Ser...
Assim, somos forçados a encarar o implacável e inevitável niilismo da trilha Ser e Dever Ser, mas sempre atordoados e frustrados pelo Querer Ser. Nada mais humano que a dúvida e a frustração. Tentamos nos livrar dessas redes, mas como em círculos sempre voltamos em algum momento a elas... doces venenos.
Então caminhamos, constantemente, na construção e decomposição do “eu”, agindo vezes como mais uma peça da engrenagem social de um mundo pré-concebido e previsível, vezes como libertinos, na sensação que somos senhores de nosso destino, defensores de nossos ideais, apreciadores da esquecida e subjugada vida.
Penso muito no papel do Querer ser e em como sua concretização não depende só de nossas decisões e ações, como o universo parece ter uma lógica própria e independente dos egocêntricos seres humanos.
Então, caberia a presença do destino, roubo do árabe a expressão maktub (estava escrito), no que já veio traçado. Porém, essa me parece uma análise simplista da realidade.
Acredito que a razão, a paixão e a sociedade modelam nosso Querer ser, transformando no Ser. Assim, posso eternamente tentar me equilibrar na corda bamba entre o ser e o querer ser, ou pender para a frustração ou apatia de um dos lados.
De alguma maneira sádica, gosto da frase: “as coisas ou eu sou assim, o que eu posso fazer?”. Posso aceitar ou posso lutar para mudar, ou ambas das coisas. Sempre enfrentamos o fato de para ser alguma coisa temos que não querer ser tudo ao mesmo tempo – parafraseando Tristão de Ataíde.
Contudo, o que há de errado em querer ser tudo ao mesmo tempo? Você, caro único leitor amigo, vai achar milhões de motivos racionais, mas eu só vejo que não há como não querer ser tudo ao mesmo tempo.
Já dizia Fernando Pessoa, que de tão gente como a gente, negou tudo, para afirmar o mesmo sentimento:
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo.”
Só sei que voltei a querer ser muitas versões de mim mesma e assim tenho todos os sonhos do mundo internalizados em mim. Nessa eterna encruzilhada. E nessa hora, parece só haver Vinicius, ah, como exprime tão bem o meu inexprimível...
O Haver
Vinicius de Moraes
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo- Perdoai-os!
porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poéticaEm busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medoInfantil de ter pequenas coragens.