sábado, dezembro 29, 2007

Analfabetos do amor

Nelson Rodrigues


1. Amigos, temos uma vastíssima experiência amorosa. A história do coração humano começou, precisamente, em Adão e Eva. Era o primeiro casal de terra e com uma vantagem considerável: - Não tinha parentes, não tinha vizinhos, não tinha fornecedores. Alguém poderia objetar (talvez com razão) que a serpente fazia as vezes de sogra, de cunhada, de amiga etc.
2. Mas o que eu queria dizer é o óbvio ululante, ou seja: - Com Adão e Eva houve o primeiro flerte, o primeiro namoro, o primeiro casamento. Eu ia acrescentar - e a primeira infidelidade. Mas trair com quem? Quero crer que Eva foi, talvez contrafeita, uma mulher rigorosamente fiel. Eu imagino o que teria sido, num confortável paraíso, a noite de núpcias do primeiro casal.
3. Pois bem. Isso ocorreu há muito tempo. Eu vos digo: essa experiência amorosa, que vem através dos milênios, não nos adianta de nada, nem nos abriu os olhos. O homem, que sabe de tudo, nada sabe de amor. Eu diria, se me permitem, que em amor o homem é tão analfabeto como um pássaro. Ou melhor: o pássaro tem, a seu favor, a vantagem do instinto puro, livre e clarividente. Ao passo que cada um de nós carrega, nas costas, não sei quantos preconceitos, não sei quantos equívocos. Eis a verdade: Falta-nos a espontaneidade de uma cambaxirra. E vou mais longe - o nosso amor é triste.
4. Olhem em torno. Vejam os namorados que conhecemos. Eles amam sem alegria, sim, todo o mundo ama sem alegria. Essa tristeza, inerente ao sentimento amoroso, decorre de que não sabemos amar. O homem mais sensível e lúcido é, diante do ser amado, um incerto ou, pior do que isso, um inepto. Ele não sabe o que dizer, o que fazer, o que pensar. O que nós chamamos "romance" é a soma de erros, de equívocos engraçadíssimos. Vejam: - não encontramos palavra justa, exata, perfeita; não nos ocorre o galanteio que o ser amado desejaria escutar.
5. E, no entanto, a partir de Adão e Eva, o homem já teve bastante tempo para aprender como gostar, como amar. O amor exige, entre dois seres, uma linguagem própria, um idioma específico. Mas não usamos essa linguagem ou parecemos não entender esse idioma. As pessoas que menos entendem - como se falassem línguas diferentes - são as que se amam. Dir-se-ia que o amor, em vez de unir, separa. Cabe então a pergunta - por quê? É simples. Porque amamos errado, porque não sabemos amar.
6. A rigor, o momento mais doce do amor é o flerte. O flerte não dilacera, não envenena. Um simples olhar, de uma luz mais viva; um sorriso leve é quanto basta para que dois seres experimentem a esperança de uma comunhão docemente infinita. Mas o flerte - eu prefiro o flerte à paquera - o flerte é, normalmente, uma promessa que não se cumpre. Pois, em seguida, o namoro abre uma fase de perspectivas inquietantes. Fala-se em 'briga de namorados', tão comum e, eu diria mesmo, obrigatória. Mas não são os pequeninos atritos que marcam e vão, pouco a pouco, ferindo e destruindo o sentimento amoroso.
7. Se o homem soubesse amar não elevaria a voz nunca, jamais discutiria, jamais faria sofrer. Mas ele ainda não aprendeu nada. Dir-se-ia que cada amor é o primeiro e que os amorosos dos nossos dias são tão ingênuos, inexperientes, ineptos, como Adão e Eva. Ninguém, absolutamente, sabe amar. D. Juan havia de ser tão cândido como um namoradinho de subúrbio. Amigos, o amor é um eterno recomeçar. Cada novo amor é como se fosse o primeiro e o último. E é por isso que o homem há de sofrer sempre até o fim do mundo - porque sempre há de amar errado.

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Pessoas que acreditam

Pronto, agora fiz, não sei se foi merda, mas enfim, ainda, acredito:

Um ‘não’ dito com convicção é melhor e mais importante do que um ‘sim’ dito meramente para agradar, ou, pior ainda, para evitar complicações”.

Percebi neste natal o quanto sou uma pessoa que acredita, mesmo sempre tendo me definido como uma pessoa que duvida.

Para você, caro único leitor amigo, que não sabe dessa classificação que faço das pessoas, explicarei:

  • Pessoas que acreditam: elas são ingênuas, sonhadores, credúlas, tem fé nas pessoas, no futuro, na bondade humana.
  • Pessoas que duvidam: elas são sarcásticas, atéias ou agnósticas, não confiam nem na própria sombra, devolvem perguntas ao invés de respostas, não sabem no que acreditam porque duvidam de tudo, vivem no ostracionismo, mas se orgulham disso.

Basicamente é isso, uma visão maniqueísta, mas estou ainda trabalhando no 3º tipo de pessoa, em breve terem uma definição.

Pois é, nesse natal, vi o tanto que sou boba e ingênua, entretanto, melhor ser quem eu sou do que ficar nesse arquétipo social

Agora, esperemos.... Afff...

Não se reprima, pode gritar, ôô...

Tirei esse trecho do site LLL, tava aqui me angustiando pensando se devia ou não fazer o que queria, e se ele pensasse isso ou aquilo. Li o trecho abaixo e pensei: a teoria do foda-se ainda me libertará.

"Email que chegou há pouco tempo, assunto: "mentira", representativo de várias mensagens semelhantes que recebo:

'você justificou tanto que não se importa com a opinião dos outros sobre você, que me parece justamente o contrario... o tempo todo você ficou tentando provar que nunca foi nem ai pra o que os outros pensam ou dizem da sua pessoa...mais tudio isso é pura mentira... se você não se importasse com a opinião dos outros vc não precisaria ficar justificando isso...'
A resposta é simples: a descoberta de que eu não precisava agradar os outros nem falar o que queriam ouvir pra ser amado, pra conseguir mulher, pra ser lido, pra arrumar trabalho, pra tudo, enfim, foi algo tão transcendental e esmagador na minha vida que fico mortificado de ver tanta gente ainda sendo oprimida pela ditadura da opinião dos outros.
E me pego pensando: as pessoas devem ser mesmo muito inseguras se acham que o único jeito de serem aceitas é eternamente se censurando, se reprimindo, se anulando."Alex do LLL.

De volta para os episódios: Homem é tudo palhaço

To be continued...

Gentileza gera gentileza


da Folha Online


Todas as manhãs eu o via. Era por volta de 1992, 1993, eu morava na zona sul do Rio e trabalhava no centro, na avenida Presidente Vargas. Não me lembro bem qual era o caminho que pegava, mas o certo é que aquela figurinha magra, mirrada mesmo, chamava a atenção na paisagem cinza dos viadutos e avenidas centrais, com sua bata branca, branquíssima, tão alva quanto suas longas barbas.

Carregava uma placa escrita em preto, verde e amarelo, com dizeres que em nada combinavam com o trânsito ou com o corre-corre das pessoas, a maioria delas ignorando-o solenemente.
Eu não conseguia ignorá-lo, intrigava aquela figura que pregava gentileza na plaqueta singela e também nos grafites que pespegava nos muros da redondeza, bem como nas colunas dos viadutos.


Era o Profeta Gentileza, um desses homens, maluco para muitos, mas que para mim são aqueles seres que simplesmente resolvem ir, deixar para trás tudo, seja lá o que for, e simplesmente ir.
No caso dele, foi em direção a uma atitude de vida absolutamente pacifista e de sã insensatez, branca como sua barba e sua bata: gentileza gera gentileza.


Ele talvez nunca tenha lido nada referente a budismo, cujos preceitos contemplam esta assertiva. E provavelmente não estivesse nem aí se todo aquele povaréu que passava apressado levava a sério ou na chacota a sua mensagem --passada a ele sabe-se lá por quem ou por qual desígnios.


Mas o Profeta Gentileza era e tornou-se cada vez mais uma figura daquelas carimbadas, referência naquele centro do Rio, virou personagem de reportagens, deu entrevistas nas quais tentava explicar inexplicavelmente seus dogmas, até que morreu não sei ao certo quando.
Outro dia, passando naquela área do Rio próximo à rodoviária, zona portuária deteriorada como o quê, lá estavam os escritos do Profeta, preservados por outros malucos na pilastra do viaduto.
Fiquei feliz com aquilo, havia portanto mais gente interessada na simplicidade do que o homem dizia, e que pode ser no fundo uma grande verdade: gentileza gera gentileza...


Por que não?


Eis que, mais recentemente, andando pelos orkuts da vida, entro na página de uma amiga e o que encontro por lá? A reprodução da mensagem do Gentileza, tal e qual ele carregava em sua placa profética.


Daí a querer transformar o dito espirituoso que me conquistou para sempre em mensagem de fim de ano foi um passo.


Portanto, aí está: gentileza gera gentileza.


Que este seja o mote para 2008!


Até janeiro...


Luiz Caversan, 52, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano, Ilustrada e Dinheiro, entre outros. Escreve para a Folha Online.

Fiquem com a música da Marisa Monte sobre o Profeta Gentileza:

Gentileza

"Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza

Só ficou no muro

Tristeza e tinta fresca

Nós que passamos apressados

Pelas ruas da cidade

Merecemos ler as letras

E as palavras de Gentileza

Por isso eu perguntoÀ você no mundo

Se é mais inteligente

O livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola

A vida é o circo

Amor palavra que liberta

Já dizia o Profeta"

quarta-feira, dezembro 26, 2007

ANTES DO AMANHECER


Mais uma noite
E eu ainda não sei o que fazer,
Meus passos cansados se perdem
Dos outros mundos...
A magia da noite invade-me a alma,
Que flutua além dos nossos horizontes...
Além dos dogmas, dos mantras...
Além das vidas...
Nada faz sentido, agora que não existo
Somente a luz, a névoa que nunca vi,
A paz que eu não imagino,
A força que eu nunca tive... A vida que eu não vivi...
A noite chega, E eu não sei como voltar...
Meus passos leves me guiam
Por meus outros mundos...
Perdidos...
A noite se vai,
E nada faz sentido agora que eu existo...
Falta-me a luz, a névoa, a paz, a força,
A outra vida que eu vivi...
Antes do amanhecer...

Por que?

Impressiono-me com o fato de ouvir uma música que parece traduzir o que sentimos, naquele exato momento, feita para você e sobre você. O grande problema é quando você entende a música exatamente pelo oposto dela. Dessa forma, não é ainda bem, mas Por que?

Vanessa da Mata - Ainda Bem

Ainda bem
Que você vive comigo
Porque senão
Como seria esta vida?
Sei lá, sei lá

Nos dias frios
Em que nós estamos juntos
Nos abraçamos sob o nosso conforto
De amar, de amar

Se há dores tudo fica mais fácil
Seu rosto silencia e faz parar
As flores que me manda são fato
Do nosso cuidado e entrega
Meus beijos sem os seus não dariam
Os dias chegariam sem paixão
Meu corpo sem o seu uma parte
Seria o acaso e não sorte

Neste mundo de tantos anos
Entre tantos outros
Que sorte a nossa heim?
Entre tantas paixões
Esse encontro nós dois
Esse amor

Entre tantos outros
Entre tantos anos
Que sorte a nossa heim?
Entre tantas paixões
Esse encontro nós dois esse amor

Entre tantas paixões
Esse encontro nós dois esse amor.

As cartas que eu não te mando

Muitas vezes tenho essa necessidade insana de escrever, de colocar para fora o que sinto, mas ninguém irá entender. Escrevo para o meu único caro leitor amigo, no fundo meu id. Hoje me sinto diferente queria escrever essa carta para um único caro leitor que acho que não irá ler essa carta, porque para você escrevo cartas que eu não mando.

Leoni - As Cartas Que Eu Não Mando
Rio de Janeiro
Hoje é 23 do 3
Como vão as coisas
De mês em mês
Eu me sento pra escrever pra você

Eu reformei a casa
Você nem soube disso
Nem das outras coisas
Sabe eu tive um filho
Já faz tempo que eu me perdi de você

Guardo pra te dar as cartas que eu não mando
Conto por contar
E deixo em algum canto

Vi alguns amigos
Tropeçando pela vida
Andei por tantas ruas
São histórias esquecidas
Que um dia eu quis contar pra você

Eu fico imaginando
Sua casa e seus amigos
Com quem você se deita
Quem te dá abrigo
Eu me lembro que eu já contei com você

E as pilhas de envelopes
Já não cabem nos armários
Vão tomando meu espaço
Fazem montes pela sala
Hoje são a minha cama
Minha mesa, meus lençóis
E eu me visto de saudades
Do que já não somos nós

sábado, dezembro 01, 2007

Lágrimas de Diamantes


Show do Paulinho Moska dia 29 de novembro. Eu de tiete total. Literalmente passando mal, oops, passando muitíssimo bem a 2 palmos dele.
Como seria eu encontrando Moska e Drexler juntos? Só marlonbrando para saber...
Lágrimas de Diamantes
Moska
Não se preocupe mais
Com minha imperfeição
Não se pergunte mais
Porque me disse não
Se eu não procuro agora
O que encontramos antes
É só porque a noite chora
Lágrimas de diamantes
Lágrimas de diamantes
À noite, lágrimas de diamantes
De dia lágrimas,
à noite amantes
Lágrimas de diamantes

segunda-feira, novembro 12, 2007

Condição Humana

Seria perfeito se pudessemos prometer e cumprir a promessa de não magoar o outro. Mas, infelizmente, é inerente aos seres humanos o fato de não sabermos amar, como diria Nelson Rodrigues.

Condição Humana
Linox

Desculpe!
Mas não posso prometer
Que eu nunca vou
Te machucar
Porque!
Sob a dura
Condição Humana
Vivemos eu e você
Como sempre foi

Todo dia, um novo dia...
Eu sei que mal
A gente se juntou
E já mudou
No modo de pensar
E o medo de mudar assusta
Eu sei!
E custa a aliviar
Mas não há de ser

Mais forte que um novo dia...
Afinal!
Tudo aconteceu
De repente
Num sinal!
Era tudo
Tão diferente...

O amor chegou
E eu cheguei prá você
Você me olhou
E a gente pagou prá ver...

Desculpe!
Mas não posso prometer
Que eu nunca vou
Te machucar
Porque!
Sob a dura
Condição Humana
Vivemos eu e você
Como sempre foi
Todo dia, um novo dia...



E se eu não for do jeito

Que espera que eu seja

Não veja isso

Como uma coisa ruim

Assim as nossas diferenças

Jamais serão nosso fim...



Afinal!Tudo aconteceu

De repenteNum sinal!

Era tudo

Tão diferente...



O amor chegou

E eu cheguei prá você

Você me olhou

E a gente pagou prá ver

E a gente pagou prá ver

Poema

Essa é uma música que o cazuza compôs pouco antes de morrer, tem uma linda melodia, que foi acertada pelo Frejat e teve a letra composta pelo Ney Matogrosso. Por sinal, uma das letras mais lindas que já ouvi.

Poema
Música: Cazuza e Frejat Letra: Ney Matogrosso

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo
Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo, era uma coisa sua que ficou em mim, que não tem fim
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás

sexta-feira, novembro 09, 2007

Tristeza não tem fim

Em meio ao meu ócio produtivo, atordoada pela culpa pós-moderna da produtividade, e tentada eternamente pela preguiça como estilo de vida, lia um texto da coluna do Caversan na Folha, quando a ingrata angústia tomou conta do meu ser.


Você, meu caro único leitor amigo, questiona-se qual é minha nova angústia internalizada. Mas não se preocupe que não farei segredo.


O objeto da minha angústia foi a conclusão desse artigo: “Afinal uma tristeza que aparentemente não tem fim, pode ser apenas uma dor-de-cotovelo. Em vez de Prozac, talvez precise de um bom e novo amor.”


Será?


Tristeza não tem fim/ Felicidade sim
("A Felicidade", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes)


Nascemos para perseguir a borboleta de asas de fogo. Se não a pegamos, seremos infelizes, e se a pegamos, lá se nos queimam as mãos.
(Monteiro Lobato em "A Barca de Gleyre)


Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor
("A Flor e O Espinho", de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito)

Bom dia tristeza
Que tarde tristeza
Você veio hoje me ver
Já estava ficando até meio triste
De estar tanto tempo longe de você
Se chegue tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar
Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar
Chorar de tristeza
Tristeza de amar
("Bom Dia Tristeza", de Vinícius de Moraes e Adoniran Barbosa )

O inferno são os outros

João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.
da Folha Online

Não uso relógio. Nem sequer para despertar. Despesa inútil. Os meus vizinhos tratam do assunto por mim, todos os dias, nos sete dias da semana. Mudei de casa uns meses atrás e fiquei abismado com a pontualidade dos bichos. Comecei por tirar apontamentos. Interesse científico, não mais. Hoje, conheço a rotina deles, e a minha, que recito de memória como os Gregos Antigos recitavam as canções de Homero.

Durante a semana, tudo começa com o vizinho de cima que usa o banheiro às seis da manhã. A mulher usa às seis e quinze. Sei distinguir os gêneros pelo fluxo urológico: intermitente, o dele; contínuo, o dela. Problemas de próstata, aposto. Depois, a água do lavatório corre, ele provavelmente faz a barba. Não sei quem usa o secador. Pela expressão industrial do som, é ela. A julgar pela dimensão do penteado, que me assaltou certo dia no elevador, é definitivamente ela. Às sete, abrem a porta do apartamento. Usam as escadas (de manhã), porque é mais rápido. Ela fala muito. Ele não fala nada. The end?

Longe disso. É pelas sete que os vizinhos do lado continuam a sinfonia inacabada. Confesso que não são tão pontuais como os vizinhos de cima. Às vezes, com indisfarçável preguiça, acordam às sete e dez, sete e quinze; depois acordam as crianças, dois anjos que começam imediatamente a destruir a casa e as minhas últimas réstias de sanidade. Das sete e vinte às oito e pouco, os pais tomam banho; os filhos já tomaram na noite anterior e aproveitam a ausência dos pais para deitar fogo à casa.

Brinco. Ou quase. Os desenhos animados passam agora na TV com potência sonora que daria para alimentar um estádio. O prédio treme. Perante o excesso, a mãe grita com os filhos. Os filhos, num belo retrato da educação moderna, gritam com a mãe. Aposto que batem na mãe. E eu, como qualquer cinéfilo amador perante as torpezas do vilão, pergunto com unhas roídas: "E o pai? Onde está o pai, meu Deus?"

O pai entra em cena, acaba com a discussão e, pela violência dos tapas, acaba com os filhos. São segundos de silêncio, segundos de suspense, quebrados finalmente pelo choro das crianças, que começa em crescendo, como nas aberturas de Wagner. Fenômeno fascinante: elas nunca choram ao mesmo tempo. A orquestra está suficientemente afinada para que uma avance quando a outra se cansa. Às oito e meia, a família abandona o lar. Aplausos, aplausos.

Tenho duas horas de descanso. Até as dez e meia, altura em que o vizinho de baixo entende ser seu dever moral contribuir para a minha educação nas áreas do metal, trash, black metal, doom metal e manicômio metal. Em matéria de radioatividade, não há diferenças entre Lisboa e Chernobyl. Pelas onze, avançam os Sepultura. Pelas onze e dez, eu peço para ser sepultado. E começo a redigir o meu testamento para o caso de me encontrarem na banheira, o único sítio da casa onde posso dormir e até escrever sossegado. Como Vinicius de Moraes, sim, que seguramente tinha vizinhança igual.

Pena que a banheira nem sempre resulte: aos fins-de-semana, por exemplo, os meus vizinhos aproveitam as manhãs livres para fazerem o que Adão e Eva começaram depois do episódio da maçã. O meu banheiro, não perguntem por que, amplifica as intimidades.

Os de cima são silenciosos e rápidos. Em dez minutos, e como diria Glauber Rocha, é a terra a transar. Das onze às onze e dez, existe uma cama e existe o triste ranger da cama. Não trocam palavra. Ou trocam - mas eu não consigo ouvir. Pena. Quando a água chapinha no bidé, sabemos que a paixão também corre pelo cano. Até ao sábado seguinte.

Mas estranho são os vizinhos do lado. Com duas crianças, eles conseguem repetir a dose e a senhora leva o prêmio Meg Ryan da Semana. Com a diferença de que Meg Ryan fingia o orgasmo. Aqui, não, violão. É impossível, humanamente impossível, fingir uma coisa destas: gritos sincopados, como a sirene de uma ambulância, que termina com um vigoroso rugido selvático, na melhor tradição Metro-Goldwyn-Mayer.

Felizmente, o amor do vizinho de baixo pelo rock metálico já o deixou surdo há muito para os chamamentos de Cupido. Nenhum sexo por aquelas bandas. Exceto se o ladrar do cão, que se prolonga por 24 horas, for a cobertura perfeita para um verdadeiro Casanova dos infernos. Prometo investigar.

A dúvida é inevitável: chegou o momento de eu trocar de casa? Não creio. Não apenas porque o cenário seria provavelmente pior, ou igual. Mas porque existe em toda esta sinfonia um fundo familiar, e até teatral, que simplesmente me encanta. Teatral? Nem mais. Deitado na escuridão da cama e com o sono desfeito em farrapos, eu sou uma espécie de encenador por antecipação, que dá ordens mentais aos meus atores privados.

"Correr a água."

Eles correm a água.

"Bater nas crianças."

Eles batem nas crianças.

"Rugir como um leão."

Rrrrrrrrrrrrrrr...

Além disso, seria duvidoso que eu encontrasse em qualquer outro bairro da cidade leitores desta "Folha" tão fiéis como os vizinhos de cima, de baixo e do lado.

sexta-feira, outubro 12, 2007

Good Luck/ Boa sorte

Vanessa da Mata e Ben Harper

Por que não eu?

Leoni

Quando ela cai no sofá
So far away
Vinho à beça na cabeça
Eu que sei

Quando ela insiste em beijar
seu travesseiro
Eu me viro do avesso
Eu vou dizer aquelas coisas
Mas na hora esqueço

Por que não eu?
Por que não eu?

Eu encomendo um jantar
Só pra nós dois
Se não tem nada depois
Por que não eu?

Você tá nessa rejeitada
Caçando paixão
Eu com a cara mais lavada
Digo: porque não



Então, por que não eu?

quarta-feira, setembro 12, 2007

Paris, Je T'Aime


Nacionalidade: Liechtenstein / Suiça / Alemanha / França, 2006.

Assisti a esse filme e adorei. São vários curtas metragens de diferentes diretores que falam de amor em Paris ou amor por Paris. Dois apenas me pareceram enfadonhos, mas não conseguiram abalar o encatamento do filme, muito menos de Paris.

Como alguns dizem: "O meu país é minha pátria, mas Paris é meu Lar..."

Recomento muito.

quinta-feira, agosto 30, 2007

Posso ser freira sendo agnóstica?

Cansei dos homens. Devia está escrevendo para o blog Homem é tudo palahaço. Mas ao invés disso, tô aqui pensando se posso ir pra clausura sendo agnóstica. Caro único leitor amigo acha que sou louca? Ás vezes tenho que concordar, mas depois do palhaço você é bonita demais para mim, palhaço conquistador de meia tigela, palhaço tenho outra namorada, palhaço socialista, palhaço não quero nada com você, mas te quero por perto....

Cansei de citar os atuantes no picadeiro. Então, paro para refletir se não deveria parar de procurar um cara legal, engraçado e interessante, e ir logo para clausura. Já dizem que errar é humano, e repetir o erro é burrice. Então, sou burra mesmo.

quinta-feira, agosto 16, 2007

Pelo direito ao silêncio


Protesto!!!!
Pelo Direito ao Silêncio!
Respeitem a necessidade do silêncio....

quarta-feira, agosto 15, 2007

Hurricane




Às vezes, gosto de não acreditar em coincidências. Essa órbita inexplicável que movimenta o universo. Situações escolhem você. Hoje, lembrava do discurso do Martin Luther King, postado abaixo. Não sei por qual razão, mas pensei no dia quando ainda criança ouvi esse discurso. Como aquelas palavras me tocaram, me fizeram desejar ser a mudança que quero ver no mundo, como já dizia Gandhi.

Então, quase sem querer assisti, sem muitas pretensões e mais por falta de opções, ao filme “Hurricane”, apesar da originalidade não ser marcante, ainda me toco por histórias de fórmulas simples e essência verdadeira. Mesmo que sejam e devam ser em certa medida previsíveis.

Hurricane - Bob Dylan

(…)
Yes here comes the story of the Hurricane
The man the authorities came to blame
For something that he never done
Put in a prison cell but one time he could-a been
The champion of the world.
(…)

An innocent man in a living hell
That's the story of the Hurricane
But it won't be over till they clear his name
And give him back the time he's done
Put him in a prison cell but one time he could-a been
The champion of the world

Hurricane - O Furacão (1999)
Direção: Norman Jewison
Elenco:
Denzel Washington(Rubin "Hurricane" Carter)
Vicellous Reon Shannon (Lesra Martin)
Deborah Unger (Lisa Peters)
Liev Schreiber (Sam Chaiton)
John Hannah (Terry Swinton)
Dan Hedaya (Detetive Vincent Della Pesca)
Debbi Morgan (Mae Thelma)

Sinopse: Em junho de 1966, Rubin "Hurricane" Carter era um forte candidato ao título mundial de boxe. Entretanto, os sonhos de Carter vão por água abaixo quando três pessoas são assassinadas num bar em Nova Jersey. Indo para casa em seu carro e passando perto do local do crime, Carter é erroneamente preso como um dos assassinos e condenado à prisão perpétua. Anos mais tarde, Carter publica um memorial, chamado "The 16th round", em que conta todo o caso. O livro inspira um adolescente do Brooklyn e três ativistas canadenses a juntarem forças com Carter para lutar por sua inocência.
- Recebeu uma indicação ao Oscar, de Melhor Ator (Denzel Washington).
- Venceu o Globo de Ouro de Melhor Ator (Denzel Washington) e foi ainda indicado nas categorias de Melhor Filme em Drama e Melhor Diretor.
- Ganhou o Urso de Ouro de Melhor Ator (Denzel Washington) e o Prêmio do Júri no Festival de Berlim.

Eu tenho um sonho...

Ainda me lembro a primeira vez que ouvi a gravação desse discurso...

Martin, eu tenho vários sonhos, mas nunca conseguirei falar sobre eles como você naquele dia de agosto de 1963.


E você, caro único leitor amigo, tem um sonho?



EU TENHO UM SONHO
Discurso de Martin Luther King (28/08/1963)

" (...) Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.


Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.


Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.


Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.


Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.



Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!



Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.



Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.


"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.


Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,


De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"


E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.


E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire. Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.


Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.


Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.


Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.


Mas não é só isso.


Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.


Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.


Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.


Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.


E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:

"Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal."

terça-feira, agosto 14, 2007

Por que nos pedem para abandonar nossos sonhos?

“Nossos sonhos, mesmo aqueles inatingíveis, merecem ser cultivados e divididos. Assim, quem sabe, eles se tornem possíveis.” Rubem Alves



"Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!"
Das Utopias - Mario Quintana


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Fernando Pessoa

segunda-feira, agosto 13, 2007

Sem nada a dizer...


Cansei...

Queria fazer uma lista do que cansei.

Só que cansei disso também.

De volta a vida como ela é...

e os homens como são palhaços...

Os seres humanos

"Só existe uma outra espécie de seres vivos iguais ao homem, que destrói tudo à sua volta, muda-se para outro lugar, destrói novamente, e vai se mudando, deixando atrás de si um rastro de destruição. Esses seres semelhantes ao homem são os vírus". Matrix

Dever, Querer ... Ser

O mundo nos reflete antagonismos e paradoxos. Novidade? Nenhuma. Então, por que nós, eu e você, único caro leitor amigo, ficamos nos perguntando o porquê de sermos diferentes do que queremos ser e com certeza diferente do que deveríamos ser.

A filosofia do Direito adora contrapor o Ser e o Dever Ser, Kant o fez com propriedade, Habermas não nos permitiu esquecer.

Se as obrigações, sejam advindas de leis morais, sociais ou escritas, nos condenam a uma existência previsível, então a razão determinaria infalivelmente a vontade, as ações de um ser. Isto, necessariamente, implicaria que a vontade fosse faculdade de escolher só aquilo nos é permitido e ofertado como opção. Esse é o mundo ariano do Dever Ser.

Entretanto, a razão só por si não determina suficientemente à vontade. Daí surge: a liberdade, a complexidade e até as angústias do homem, mas também traz em si a magia dessa raça. Temos o círculo do Ser, esse sim é bastante interessante. Plagiando Nelson Rodrigues: “a vida como ela é”, sem véus e moral.

Entretanto, há um mundo onírico que me interessa muito mais: o Querer Ser...

Assim, somos forçados a encarar o implacável e inevitável niilismo da trilha Ser e Dever Ser, mas sempre atordoados e frustrados pelo Querer Ser. Nada mais humano que a dúvida e a frustração. Tentamos nos livrar dessas redes, mas como em círculos sempre voltamos em algum momento a elas... doces venenos.

Então caminhamos, constantemente, na construção e decomposição do “eu”, agindo vezes como mais uma peça da engrenagem social de um mundo pré-concebido e previsível, vezes como libertinos, na sensação que somos senhores de nosso destino, defensores de nossos ideais, apreciadores da esquecida e subjugada vida.

Penso muito no papel do Querer ser e em como sua concretização não depende só de nossas decisões e ações, como o universo parece ter uma lógica própria e independente dos egocêntricos seres humanos.

Então, caberia a presença do destino, roubo do árabe a expressão maktub (estava escrito), no que já veio traçado. Porém, essa me parece uma análise simplista da realidade.

Acredito que a razão, a paixão e a sociedade modelam nosso Querer ser, transformando no Ser. Assim, posso eternamente tentar me equilibrar na corda bamba entre o ser e o querer ser, ou pender para a frustração ou apatia de um dos lados.

De alguma maneira sádica, gosto da frase: “as coisas ou eu sou assim, o que eu posso fazer?”. Posso aceitar ou posso lutar para mudar, ou ambas das coisas. Sempre enfrentamos o fato de para ser alguma coisa temos que não querer ser tudo ao mesmo tempo – parafraseando Tristão de Ataíde.

Contudo, o que há de errado em querer ser tudo ao mesmo tempo? Você, caro único leitor amigo, vai achar milhões de motivos racionais, mas eu só vejo que não há como não querer ser tudo ao mesmo tempo.

Já dizia Fernando Pessoa, que de tão gente como a gente, negou tudo, para afirmar o mesmo sentimento:

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo.”

Só sei que voltei a querer ser muitas versões de mim mesma e assim tenho todos os sonhos do mundo internalizados em mim. Nessa eterna encruzilhada. E nessa hora, parece só haver Vinicius, ah, como exprime tão bem o meu inexprimível...


O Haver
Vinicius de Moraes


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura

Essa intimidade perfeita com o silêncio

Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo- Perdoai-os!

porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo

Essa mão que tateia antes de ter, esse medo

De ferir tocando, essa forte mão de homem

Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos

Essa inércia cada vez maior diante do Infinito

Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível

Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento

Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade

Do tempo, essa lenta decomposição poéticaEm busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio

Numa catedral em ruínas, essa tristeza Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria

Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza

Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido

Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa

Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado

De pequenos absurdos, essa capacidade

De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil

E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza

De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser

E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa

Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar

De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade

De aceitá-la tal como é, e essa visão Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior

De mundos inexistentes, e esse heroísmo

Estático, e essa pequenina luz indecifrável

A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos

De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória

Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade

De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade

Pelo momento a vir, quando, apressada

Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante

Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto

Esse eterno levantar-se depois de cada queda

Essa busca de equilíbrio no fio da navalha

Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medoInfantil de ter pequenas coragens.

sexta-feira, agosto 03, 2007

HOMEMÚSICA de Michel Melamed


“Antes de tudo, a Música (...) E todo o resto é literatura.”Paul Verlaine – Arte Poética

Michel funde as linguagens: Poesia, teatro, arte-tecnologia, humor, projeções em vídeo, música. Tudo se canaliza em único corpo para provocar na platéia o desejo de pensar a respeito do que se está assistindo. Mesmo que a velocidade das cenas nos atordoem, ainda dá para pensar, rir e ficar atônito.


Baseado no romance homônimo e inédito (com lançamento previsto para o segundo semestre pela Editora Objetiva), o espetáculo completa a TRILOGIA BRASILEIRA iniciada com os espetáculos Regurgitofagia e Dinheiro Grátis.


HOMEMÚSICA conta a história de Helicóptero, um jovem brasileiro com um dom único: cada parte do seu corpo emite o som de um instrumento musical. Porém, não confie muito no otimismo de Helicóptero, rapaz que consegue tirar som específico de cada parte do corpo. Com guitarra em punho e banda afiada na cozinha, ele comanda o show que aparentemente exalta a música brasileira.

A cara de ode à maravilha rítmica esconde sentimento ferrenho ao país que coleciona ao menos 10 barbaridades contra seu povo expostas todos os dias nas páginas dos jornais.

Michel Melamed vai pôr frente a frente esses dois estados antagônicos de sentimentos para criar paradoxo que impulsione uma reflexão. “Estou dividido entre o Brasil que amo e o que não suporto. O Brasil das milhões de maravilhas, da música rica que gera orgulho. O Brasil das máfias em todos os segmentos, da violência diária na qual qualquer um chuta qualquer um e nada acontece.” Na verdade, ele alimenta um tipo de paixão platônica pelo Brasil, o venera, só que esse país só lhe FODE.

“Podia ser em qualquer direção que o sentido seria um só. Os paus-de-arara, ônibus, carroças e caminhões, todos atravessam o país sem fazer cócegas, carinho ou cicatriz. O mapa parece intocado apesar do trajeto incessante. Como um carrinho de mão por sobre a terra este rastro deveria ficar marcado, este percurso merecia se fundir ao chão, afundá-lo. Essas estradas que ligam o norte e o sul do país, pelas histórias que carregam, deveriam estar abaixo do nível do mar.

Mas não é assim que banda nenhuma toca. E é por isso que tem cidade grande e cidade pequena. Tem a cidade que manda e a que corre atrás da bolinha, traz os chinelos. É cidade catando migalha, cidade de quatro pra cidade, chupando o pau de cidade, tomando cascudo e vomitando sobre a outra que agradece dada a penúria. E maioria em volta em silêncio. De vez em quando o som das rodovias rompe esse silêncio, mas não muda nada não. Porque as cidades estão só brincando, são como crianças. Crianças perversas maltratando-se umas às outras. Daí tem a cidade maiorzona, desengonçada e má, que bate em todo país, mas que mais dia menos dia vai levar porrada de todas juntas ou de uma pequena, que então vai virar herói e namorar a cidade mais bonita daquela região...”

Por isso, Helicóptero nascido no interior de um destes Brasis, a fim de fazer-se cumprir como artista ele ruma ao Sul-Maravilha para participar do programa de tevê que possui 100% da audiência nacional: o ‘Show do Estupra’ – a mera lembrança do Caldeirão do Huck não parece coincidência acidental.
As coisas, porém, não acontecem como o imaginado e, ao invés do reconhecimento, ele encontra o amor e, então, o desamor...

Ah, o AMOR, esse perfeito, grande e único amor... Invenção romântica que tem seu fim apressado pela crença que a tudo resiste e supera: traição, ciúme, verdades, ao seu verdadeiro eu, e sim, caro único leitor amigo, as provas de amor. Tudo só apressa o fim desse amor, pois esse é falível e como o é... Então, o desamor...

Em suma, o Homemúsica é uma carta de amor e de repúdio ao Brasil. Perpassando por questões das riquezas humanas e dos problemas brasileiros, acentuados pela falta de desesperança de deu povo.

O espetáculo foi contemplado com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz.

Ficha técnica:
Elenco: Michel Melamed (guitarra, voz, texto, canções, direção), Lucas Marcier/ Estúdio Arpx (baixo, sampler, direção musical), Roberto Silva (trombone), Murilo O´Rellly (percussão) e João Di Sabatto (bateria).


Comentário adicional que talvez você, caro único leitor amigo, dispense:
Michel Melamed é um show em todos os sentidos...

sábado, junho 09, 2007

Alguma das melhores coisas da Vida

Amigos de verdade;
Amigos que ligam quando você está solitária;
Fazer novos amigos ou ficar junto dos velhos;
Sair com os amigos;
Passar o tempo com os amigos;
Ver os amigos rindo;
Segurar as mãos de um amigo;
Encontrar com um velho amigo e descobrir que têm coisas que nunca mudam;
Viagens com os amigos;
Viajar;
Voltar para casa;
Conhecer gente nova e bacana;
Nascer do sol depois de uma ótima noitada;
Pôr do sol ouvindo música;
Brisa do mar;
Trilha no cerrado;
Cachoeira bem gelada;
Um longo banho muito quente;
Aparições desejadas de surpresa;
Presente inesperado;
Ver a expressão de alguém que ganhou um presente que queria muito de você;
Dançar até não agüentar mais;
Cantar uma música sem saber a letra;
Água quando se está com sede;
Sorvete no Inverno;
Brigadeiro quente de colher;
Uma cerveja, uma vodka, um vinho para relaxar;
Acender um cigarro na hora do estresse;
Comer e Emagrecer;
Escrever;
Ler;
Achar algo que parece ter escrito sobre e para você;
Comprar algo que te faça feliz;
Sobrar dinheiro do salário;
Fazer perguntas indiscretas e obter respostas;
Deixar aquele cara sem palavras;
Alguém gostar de você;
Você gostar de alguém;
Abraçar a pessoa que você ama;
Ter calafrios ao ver aquela pessoa;
Paixão Platônica;
Paixões correspondidas;
Amor;
Perceber que a paixão da sua infância ainda te olha diferente;
Beijo na boca;
Beijo de qualquer maneira;
Olhares provocantes;
Ficar boba de vez em quando ou de vez em sempre;
Falar algo inteligente que você nem sabia que sabia;
Saber que a banda que você ama está vindo tocar;
É você vai ao show;
Ouvir baladas no escuro;
Dançar e cantar no banho;
Andar sem rumo;
Superar-se;
Sonhos realizados;
Telefonemas inesperados de alguém distante;
Buscar alguém no aeroporto que você não vê faz tempo;
Colocar na rádio bem na hora que está tocando a sua música.
Capuccino;
Rever fotografias;
Banho de chuva;
Planos para o futuro;
Receber um enorme sorriso quando você chega;
Receber cartas;
Decisões impulsivas que dão certo;
Sorrir sozinha no meio da rua;
Rir de você mesmo;
Rir sem absolutamente razão nenhuma;
Rir por alguma coisa que você lembrou;
Rir até o rosto doer e perder o fôlego;
Ouvir acidentalmente alguém falar bem de você;
Ter alguém pra te dizer que você que é bonita;
Admirar alguém;
Acordar e perceber que ainda faltam algumas horas para ter que acordar;
Ficar de preguiça na cama;
Bons sonhos;
Abraço de mãe quando tudo dá errado;
Alguém te abraçar em silêncio quando você está triste;
Ter esperança;
Olhar pro céu e ver que tudo faz sentido;
Imaginar que você, caro único leitor amigo, está sorrindo ao ler esse meu texto.

sexta-feira, junho 01, 2007

Eterno Pecador

Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

Quis evitar mais uma coluna sobre o papa Bento 16 assim como o diabo foge da cruz, mas não resisti. Caí em tentação. Há duas coisas sobre o sumo pontífice que ainda acho necessário destacar. A primeira, como bem observou o José Simão, é que ele fala português melhor do que o Lula. A segunda é que o santo padre é um estopador em anidropodotecas --apesar de incomum, essa é a expressão mais elevada que encontrei para dizer "chato de galochas".

No plano lingüístico, muito embora o presidente brasileiro demonstre maior segurança na utilização do idioma, o bispo de Roma é mais escorreito no emprego daquilo que se convencionou chamar de concordância verbo-nominal. Talvez por influência do latim, quando o papa fala, um plural é um plural --o que nem sempre ocorre no discurso presidencial. Em termos de conteúdo, entretanto, fico com Lula, que me surpreendeu positivamente ao defender de modo polido, mas sem deixar de ser enfático o Estado laico. Constato com satisfação que, no poder, Lula vendeu-se apenas aos banqueiros, e não aos banqueiros e aos padres como eu já receava.

Antes que me tomem por um anticlerical empedernido, devo dizer que estou entre as pessoas mais tolerantes do mundo. Ao contrário de muitos representantes dos meios seculares intelectualizados, não pretendo cassar a palavra ao Vaticano. Suas posições contra o aborto, a eutanásia, o sexo antes do casamento, a camisinha, as drogas e a reprodução assistida são tão boas como as minhas a favor disso tudo. E, se eu tenho o direito de me manifestar, é líqüido e certo que o papa também pode dizer o que pensa.

E é preciso reconhecer que ele o fez, talvez até com algum exagero. Em praticamente todas as suas intervenções por aqui, o sumo pontífice aproveitou para passar o seu recado. Nem bem desembarcou, condenou o aborto. Falou aos jovens e condenou o aborto. Criticou os traficantes e condenou o aborto. Abriu a conferência episcopal e condenou o aborto. Despediu-se e condenou o aborto. O lado bom é que agora não temos nenhuma dúvida de que a Igreja Católica condena o aborto.

De novo, não vejo problemas nas colocações papais. Quem partilha do pressuposto da igreja de que existe uma moral eterna e incondicionada e aceita a noção de que a vida tem início na concepção não poderia mesmo dizer outra coisa. O católico que queira conservar-se um bom católico está obrigado a aceitar as determinações papais. Como cidadãos brasileiros, entretanto, cada um de nós é livre para escolher se vai ou não pertencer a uma igreja e mesmo se vai ficar com o "pacote completo" ou apenas com partes dele --o tal do "supermercado da fé" de que Bento 16 tanto se queixa. As lógicas civil e religiosa não se comunicam.

O "projeto" deste papa é justamente expurgar a Igreja Católica dos maus fiéis, que ficam apenas com o que lhes interessa da doutrina. Quer, de preferência, transformá-los em bons devotos, mas já antecipou que está disposto a levar a ortodoxia a ferro e fogo, mesmo que isso signifique a perda de adeptos. Não vejo grande chance de sucesso nessa empreitada, mas não sou eu quem vai ensinar o papa a rezar a missa.

O problema do catolicismo em sua vertente mais rígida é que ele é contra a natureza humana. Estamos, como qualquer animal, biologicamente programados para fazer sexo --pelo menos para os homens, a estratégia mais comum é preferir a quantidade de parceiras à qualidade. Mais do que isso, temos (homens e mulheres) fortes inclinações para a busca do prazer --o hedonismo também tão criticado pelo papa-- e não gostamos que imprevistos em princípio evitáveis ou reversíveis (como uma Aids ou uma gravidez não planejada) atrapalhem nossos planos de vida. Em uma palavra, somos terrível e humanamente egoístas.

Isso não significa, é claro, que uma vida "virtuosa" seja impossível. Há quem seja capaz de viver sem sexo. Alguns jovens conseguem manter-se virgens até o casamento. Existem até aqueles que podem aspirar à santidade, levando uma vida inteiramente dedicada a fazer o bem para outras pessoas. (Poderíamos, é certo, "diminuir" um pouco o significado desse altruísmo afirmando que os candidatos a santo são tão egoístas quanto qualquer outro ser humano, só que, em vez de aplicar suas energias em obter para si deliciosas noites de enlevos lúbricos, concentram-se em garantir um lugar no céu --o prêmio máximo).

É no plano epidemiológico que os desígnios papais saem frustrados. Embora a maioria das pessoas afirme acreditar numa próxima vida, age como se esta fosse a única. Com efeito, nem os religiosos mais fervorosos parecem muito ansiosos para morrer. Esse, entretanto, seria o caminho "racional", a rota mais rápida para a tão almejada redenção. Homens-bomba são, felizmente, exceções no universo de gente com excesso de fé.

Gostemos ou não, a maioria das pessoas não quer ou não consegue viver segundo o manual de instruções do Vaticano. Farão sexo antes, durante e depois do casamento, usarão camisinha, não hesitarão muito antes de recorrer a um aborto se se virem diante desse dilema, experimentarão drogas e, de vez em quando, até irão à missa.

Esse lado mais severo do catolicismo é compensado pela boa tolerância dos padres para com os pecadores. Se em termos contratuais a religião exige do adepto o quase impossível, isso é contrabalançado pela relativa facilidade com que o faltoso obtém perdão, confessando-se e penitenciando-se. Não é surpreendente, portanto, que os próprios católicos estejam entre os primeiros a admitir que não praticam sua religião de modo muito exemplar.

O estranho aqui é que Bento 16, por todos apontado como um rematado conservador, atue com o que, creio, são os mesmos cacoetes das utopias de esquerda. À sua concepção de religião parece subjazer um papel de força transformadora do homem e, em conseqüência, da sociedade. Se a maioria agir de acordo com a moral católica, além de povoar o céu com mais almas, construiremos um mundo melhor. Não é por outra razão que o Vaticano procura convencer o Brasil a transformar o ensino religioso, hoje optativo na rede pública, em obrigatório.

E não estamos falando de pequenas transformações, de modelagens, que o meio social de fato consegue imprimir ao homem, seja pela via da educação seja pela da repressão, mas de mudanças radicais e justamente nas esferas em que nossa animalidade se faz mais notável, como o sexo e manifestações de auto-interesse. Aqui, Bento 16 lembra muito seu compatriota Karl Marx. A diferença fica apenas por conta da localização do paraíso. Para o primeiro, nas alturas, para o segundo, na terra mesmo.

De minha parte, reservo-me o direito do ceticismo. Não acho, por certo, que o homem seja um caso perdido. Se tomarmos uma escala de longo prazo, maior até que a da Igreja Católica, estamos melhorando. Já não atacamos nossos vizinhos apenas por receio de que eles nos ataquem antes. Só que as mudanças para melhor no comportamento humano vêm menos traumaticamente quando ninguém tenta impingi-las através de projetos de engenharia social ou moral. Se o capitalismo tem alguma vantagem sobre o marxismo e o catolicismo, é que ele é menos ambicioso. Não tem a pretensão de alterar a natureza humana nem tenta negar-lhe os traços animalescos.

quarta-feira, maio 30, 2007

Mandala

Mandala é círculo mágico:
Mandala é ponte para dimensões superiores;
Mandala é caminho a percorrer;
Mandala nos revela nosso Eu;
Mandala nos leva ao nosso centro;
Mandala nos leva a nossa Essência;
Mandala nos leva a Fonte Divina;
Mandala é energia e movimento;
Mandala é totalidade, integração e harmonia;
Mandala é o começo, o percorrer, o fim e o começo;
Mandala é morte e renascimento...

A Chove Chuva ...

Cecília Meireles

A chuva chove mansamente... como um sono
Que tranqüilize, pacifique, resserene...
A chuva chove mansamente... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine...


E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono...
Véspera triste como a noite, que envenene ...
Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha...
Paço de imensos corredores espectrais,


Onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas,
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais...

terça-feira, maio 29, 2007

Ser chato

Caro único leitor amigo, retorno a esse site com um objetivo único. Dizer que em breve explicarei a complexidade de ser um chato.

Sim, não aperte os olhos, você leu certo amigo: a complexidade de ser chato.

Uso expressões derivadas de chato com frequência. Alguns pessoas ofendem-se. Não entendo porque, para mim ser chato é um elogio, uma filosofia de vida... É quase tão definidor quanto o ser "gauche" de Drummond.

Mas não cairei na tentação de explicar agora essa complexa filosofia de vida (quase tão complexa como a teoria da poligamia madura), mas em breve o farei, e quem sabe você não entrará para a fila dos que querem ser chatos na vida.

"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida'

Carlos Drummond

A conquista da noite

Sempre me surpreendo com as coincidências da vida. Alguns dissem que não existem coincidências, porém, prefiro não entrar nessa discussão, porque, assim, teria que discutir, se existe um Deus, um ser superior, forças do além, ou alguma ordem nesse universo caótico. Mas enfim, que há fatos que nos surpreendem por se encaixarem perfeitamente em situações, pelas quais passamos, isso há...

Único caro leitor amigo, estou eu aqui, chateando o meu tédio, lendo fírulas (imagino que essa palavra exista, se não há, cabe o neologismo), quando me deparo com esse texto do Coutinho, falando exatamente sobre insônia. Ah, a ingrata insônia.



Realmente, sempre tive esse sonho revelado de aproveitar melhor o tempo e não perdê-lo dormindo. Hoje, sei que nunca pensei em tamanha besteira semelhante a essa.



Pelo menos, agora posso preencher minha angústia insone com o caro Coutinho...



Quem não acompanha as leituras infrutíferas desse site, não devem saber. Mas aqui o repito: adoro os textos do Coutinho. Ele é quase tão chato como eu, praticamente minha alma gêmea, com melhores dons literários.



A Conquista da Noite



Defendo o sono sempre que posso. Não brinco. Não posso brincar. Sou um ex-insone e sei bem o que custa. Só insones verdadeiros valorizam o sono com o respeito que o sono merece.

Tudo começou sem explicação racional. Certo dia, o sono foi embora. Contemplei o tecto do quarto durante uma noite inteira. Vieram mais duas. À terceira, a minha vontade era morrer. O problema da insónia não está propriamente na noite. A noite é simples: a escuridão é amiga dos olhos, o silêncio é uma canção de embalar para uma cabeça cansada. O problema do insone são os dias: o terror do dia que chega, a luz que vai furando as persianas do quarto como balas de ouro que trazem consigo o ruído do mundo. Carros. Sirenes de polícia. Vozes. Conversas. Telefones que tocam.

Telefones que imaginamos tocar. E a certeza - a longa certeza - de que a noite chegará. E, com a noite, a evidência de uma nova cruzada. Uma solitária cruzada. Não existe solidão comparável à do insone. Na vida normal, conhecemos pessoas, perdemos pessoas. Ficamos sós. Tudo bem. Ou tudo mal. Mas a solidão do insone é uma solidão desabitada de pessoas. Somos nós e nós e nós. O mundo dorme e nós somos sós.

Disse que tudo começou sem explicação racional. Minto. Lembro agora que a insónia veio com o medo. Da morte, claro. Não sei se li demasiado Shakespeare para saber que os crimes, como em 'Macbeth', se cometem à noite. Adormecer para quê se o sono só traz esquecimento? Se o sono é um simulacro da morte? Melhor não dormir. Melhor não morrer. O caso é cientificamente interessante - disse o analista. O caso é mitologicamente relevante - diz Peter Barber, em artigo recente para o 'Financial Times'. Como relembra o autor, os filhos de Nyx, a deusa grega da noite, eram Hypnos e Thanatos. O Sono e a Morte. Só depois chegou Morfeu, o deus dos sonhos, o filho do Sono.

Não mais. Conta Peter Barber, em tom cético mas ligeiramente festivo, que o sono e os sonhos podem ser relíquias no espaço de dez anos. A ciência não pára. O mundo também não. E uma pílula pode resolver o problema dos homens. Dos homens que dormem. E dos homens que não dormem. A ideia é mimetizar quimicamente o sono, proporcionando o que apenas obtemos com oito ou dez horas de travesseiro: descanso.

Esqueçam o travesseiro. Para quê gastar um terço da vida a dormir quando é possível furar os dias, e as noites, perfeitamente acordados? Será, como dizem os cientistas, a 'conquista da noite', a barreira última do desenvolvimento pós-industrial. Os nossos antepassados regulavam a vida, e o sono, pelo ritmo natural da luz natural. Deitavam-se com a noite, acordavam com a madrugada. Esse mundo passou quando a lâmpada de Edison lançou uma maldição sobre os homens, criando um sol privado em cada habitação. O desafio, agora, é criar um sol privado no interior de cada um. Dormir para quê se é sempre dia dentro de nós?

Dias para trabalhar, explica Barber, porque as novas vigílias não se farão sem trabalho. A lógica é impoluta: viver mais é consumir mais; consumir mais é trabalhar mais. Nenhuma pausa, nenhum silêncio. Como formigas sem inverno. Como formigas de um verão permanente.

Mas não só. O fim do sono não será apenas um convite para uma vida de servidão. Será também o enterro da nossa humanidade mais literal. Disse no início que a minha insónia começou sem explicação racional. Mas eu sei como terminou. A indústria farmacêutica teve uma palavra no processo. O divã também. Mas a palavra decisiva foi a minha. A palavra decisiva é sempre a nossa. Chegou um momento - consciente, inconsciente - em que a insónia foi enxotada do quarto como se o medo fosse um animal feroz e sem rosto. O animal afastou-se. Só então o sono regressou. Verdade que não regressou sozinho. Com ele, regressou a morte. Uma vez mais.

Recebi-a como se recebem os velhos amigos: com confiança e sem temor. E ao cerrar os olhos como se fosse a primeira vez, entendi finalmente que o sono da nossa vida é, como na morte, uma suspensão da própria vida. Mas uma suspensão benigna, temporária e necessária, capaz de nos relembrar, como no amor, que a força da nossa humanidade também repousa nos momentos em que somos inocentes e vulneráveis.

João Pereira Coutinho, 30, é colunista da Folha de S.Paulo. Reuniu seus artigos no livro "Vida Independente: 1998-2003", editado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

sexta-feira, maio 25, 2007

O amor que nos aparta


O amor que nos aparta A mulher quer o amor romântico. O homem, não, ela diz. A mulher quer construir. O homem, usufruir, ela diz.

A mulher quer somar. O homem, conformar, diz também.Na desigualdade das nossas semelhanças, nos apartamos no ímpeto da aproximação. Relações chegam, duram tanto ou quanto, vão-se, deixando para trás o rastro da equação não resolvida: o que deveria ter sido feito?

Não, não é provocação, mas veja só este personagem, até então ligeiramente amoral, do livro "O Animal Agonizante", de Philip Roth sobre essa digamos assim divergência de pontos de vista: "A grande peça que a biologia prega nas pessoas é que a gente já é íntima antes mesmo de saber coisa alguma a respeito da outra pessoa. No primeiro momento, já entendemos tudo. Um é atraído pela superfície do outro no início, mas também intui a dimensão mais profunda. E a atração não precisa ser equivalente: ela se sente atraída por uma coisa, você por outra. É a superfície, é curiosidade, mas então, pum!, a dimensão profunda. É bom ela ser (...) isso, é bom ela ser aquilo, é bom eu saber tocar piano e ter um manuscrito do Kafka, mas tudo isso não passa de um desvio do caminho que vamos acabar seguindo.

Faz parte do encantamento, imagino; porém, se essa parte não fosse necessária, eu gostaria muito mais. Em matéria de encantamento, o sexo por si só já basta. Será que os homens acham as mulheres tão encantadoras quando o sexo é omitido. Será que alguém, qualquer que seja o sexo, acha alguém encantador se não houver nada sexual entre eles? Tem alguém que encanta você sem ser por isso? Não tem."

Divergência de pontos de vista é piada: trata-se aqui de incompatibilidade irreconciliável, certo moça?

Imagine, sexo basta!

E o amor, que a tudo supera e tudo resolve desde que tenha espaço para simplesmente ser, em sua magnitude e em seu encantamento que tudo supre e tudo acondiciona?

Sei, sei...E os monstros, onde enfiar os monstrinhos que nos tornam cada um a caverna escura de si mesmo, na eterna busca pela luzinha lá no final?

Erro imaginar que esse sentimento que se projeta no outro ou naquilo que nasce do contato com o outro pode encerrar toda a possibilidade incontestável der ser feliz, bem feliz.

Somos bem piores que isso...



Luiz Caversan, 50, é jornalista. Foi repórter especial, diretor da Sucursal do Rio da Folha e editor do caderno TV Folha. Escreve crônicas sobre cultura, política e comportamento aos sábados para a Folha Online.