sábado, junho 25, 2005

Cinco segundos

João Paulo Cuenca (Colunista da Revista TPM)
O colunista-penetra se apaixona


Foi num dia daqueles em que o centro fica vazio, e o pessoal do escritório joga papel picado pela janela. Fim do ano e do expediente. Você apareceu, sorriu meia dúzia de amigas e sentou na mesa ao lado. Bebendo cerveja de garrafa e comendo amendoim, cabelo preso num coque. Os papéis chovendo pela janela. Depois de você ali, a cidade calou: bocas abrindo e fechando, garçons de gravata anotando pedidos, moleques pedindo moedas, ônibus relinchando, tudo sem emitir um pio sequer. No meio do povaréu, eu podia ouvir seus dentes quebrando os amendoins, goles descendo pela sua garganta, cílios se roçando num piscar de olhos. Senti seus lábios tateando meus ouvidos. Sua chegada condenou toda aquela gente à morte instantânea.

Naquele momento, fiquei sabendo de tudo. Que iríamos nos conhecer em cerca de meia hora, quando eu me levantasse para falar bonito, entre goles e nossos olhares de espadachim. Sabia que treparíamos poucos dias depois como dois desesperados, pais de filhos natimortos, nos enlevando como quem precisa. Fiquei sabendo, olhando para você na outra mesa, que nossa persistência seria comparável à teimosia de ditadores, cães loucos e donas de casa. Que nosso amor arrancado a fórceps seria perdido para ser encontrado depois, reencontrado depois, muitas vezes, quantas vezes fosse preciso.

Sabia que brigaríamos como nunca fizemos com ninguém antes e nos xingaríamos de nomes que você teria vergonha de contar até para si mesma. Mas depois faríamos as pazes, doentes de paixão, como nunca fizemos antes. Bêbados, dançando e rindo do que só nós dois poderíamos entender. Trocando a noite pelo dia, trancados por semanas aqui em casa, ouvindo música, vendo filmes, dormindo abraçados. Sabia que, rapidamente, ganharíamos intimidade: banheiro de porta aberta, beijo sem escovar os dentes, você fazendo café de calcinha. E sabia que você falaria, alguns meses depois, que eu era o melhor amante que você já teve. E você falaria que nunca mais iria querer outra pessoa. Que o meu pau seria o melhor e mais gostoso do planeta – e continuaria sendo por todas as vidas que você pudesse encarnar. E sabia que você, entre muxoxos, diria que gostaria de acordar na minha cama todos os dias. Você até iria querer, essa nem eu esperava, me dar um molequinho de presente. Antes de você beber a cerveja do seu copo, eu já sabia como iria gostar de ouvir todas essas mentiras. E como iria te retribuir com verdades.


Psicopata de cinema


Também sabia que, mesmo assim, apesar e por causa disso, eu ficaria ciumento e obsessivo como um psicopata de cinema. Faria perguntas insidiosas sobre seu passado, ex-amantes e namorados. Sobre quem te levou para a cama e quem te deixou lá. Descobri que ficaria com taquicardia e mãos trêmulas ao imaginar você com outra pessoa, no futuro ou no passado. Descobri que você iria despertar o meu melhor e o meu pior, em proporções igualmente febris. E também descobri que iríamos superar isso. E, depois de um ano, nos casar: montaríamos um apartamento cheio de coisas suas e minhas. Um novo jeito de fazer tudo, nem seu, nem meu, mas nosso.

Você me ensinaria, com seus modos calados, a viver melhor. Tomar banho lavando as costas, comer várias vezes por dia, pensar menos. Você iria combater meu impulso suicida contra o nosso amor. Não sei se você chegou a descobrir isso ainda, mas não é que o amor simplesmente acabe. O amor é morto em dias claros como este. Carrega em si a semente desse assassinato. Às vezes o crime é doloso. Mas o normal é que seja morto corriqueiramente, como um tropeço. Com você seria diferente. Descobri, só de olhar o jeito de o cabelo cair na sua testa, que você lutaria até o fim para que eu não esquartejasse o nosso amor. Você iria conseguir.

Sabendo disso tudo, foi como se não tivesse escolha. Deixei uns trocados na mesa, levantei e lancei um último olhar na sua direção, já quase virando a esquina. Depois disso, cheguei a te procurar em outros bares e saideiras. Em alguns meses, acabei esquecendo seus olhos verdes e, com eles, tudo que descobri, em não mais que cinco segundos, num dia daqueles em que o centro fica vazio, e a gente do escritório joga papel picado pela janela. O amor é morto em dias claros como este.

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